terça-feira, 15 de dezembro de 2009

"Apocalipse Nau", de Rui Zink

Aproxima-se o fim do mundo. Este é o último dia das nossas vidas, mas tudo são apenas suposições, há quem acredite e quem não acredite, mas todos pensamos nisso. E numa família pouco convencional, repleta de problemas por resolver, umas horas é pouco tempo. E falhando a comunicação, falha tudo.
"Tele-fonar significa falar de longe. Não conseguir comunicar sem distância. Hoje as pessoas são todas tele-fónicas e tele-visíveis porque são todas perto-fóbicas. Se calhar foi por isso que o mestre decidiu pôr ponto final à brincadeira. Deixou de dar gozo gerir o inferno na Terra, tornou-se tão entediante como um disco riscado, a agulha não sai do sítio, ninguém fode nem sai de cima. Ninguém fode. Ninguém sai de cima, porque ninguém está em cima."
Rui Zink, nesta obra, faz-nos acreditar que realmente o mundo está prestes a acabar, mas de uma forma cómica, e deixa-nos presos por uma necessidade intrínseca de saber o desfecho da nossa própria história. Será mesmo o fim? É este o último livro que lemos? É este o último pensamento que temos? Estamos preparados para o nosso fim? É esta a nossa última oportunidade?
"A juventude perdida é isso mesmo: algo que não volta. Quem apanhou o barco a tempo, parabéns, os outros, os ácidos, os azedos, que se amanhem. Que façam o seu melhor para não se tornarem demasiado ácidos, para não ficarem com as vidas, as vidinhas, as videcas ulceradas até ao fim dos dias. E o fim é nunca se sabe quando. A morte não tem sentido de oportunidade, para ter essa noção era preciso viver dentro do tempo, e a morte é precisamente, por definição, o que está fora do tempo."

terça-feira, 1 de setembro de 2009

"Fernando Pessoa: O guardador de papéis", Org. Jerónimo Pizarro

Um livro para os amantes da obra e vida de Fernando Pessoa, em que se dá a conhecer uma outra vertente poucas vezes divulgada, mas provavelmente mais importante e mais reveladora da essência deste grande escritor. Ele vivia de tudo o que o rodeava e não se inibia de comentar os mais variados temas que se impunham na sua época.
"Pessoa não foi político, nem, de facto, politólogo ou sociólogo, no sentido que estes termos têm contemporâneamente, mas escreveu talvez mais de duas mil páginas sobre temas eminentemente políticos e sociológicos, das quais apenas uma pequena minoria viu a luz do dia em sua vida. As formas de «patologia social», a guerra e a paz, a grandeza e a decadência das nações, o radicalismo político, a opinião pública, o feminismo, o «preconceito revolucionário», a mentalidade e religiosidade populares, a relação do individuo e do estado, a «crença democrática», o «misticismo socialista» ou «bolchevista», o provincianismo, etc, são alguns dos muitos temas que interessam ao Pessoa «sociólogo» da política."

Para além disso, temos acesso a reflexões muito interessantes de Pessoa.
"O desenho das crianças é como o das pessoas que não sabem desenhar - ambos dizem, mas não sabem o que dizem. Não sabem desembaraçar as linhas de uma coisa das linhas das outras coisas que vêem ao mesmo tempo dentro da mesma palavra. A prova é que não são capazes de imitar o que da primeira vez lhes escorregou do corpo pela mão para o papel."
Ou ainda ensinamentos sobre os quais não podemos deixar de pensar e, quem sabe, interiorizar de modo a conferir mais um sentido à nossa vida.
"«Não tenhas mêdo de estares a ver a tua cabeça a ir directamente para a loucura, não tenhas mêdo! Deixa-a ir até à loucura! Ajuda-a a ir até à loucura. Vae tu também pessoalmente, co'a tua cabeça até à loucura. Vem ler a loucura escripta na palma da tua mão. Fecha a tua mão, com força. Agarra bem a loucura dentro da tua mão.
«Senão... se tens mêdo da duvida e te pões a fugir d'ella por môr da loucura que já está à vista, se não começas desde já a desbastar a fantasia que cresceu no logar marcado para ti, lá em baixo na terra; se não pretendes transformar essa fantasia em imaginação tranquilla e creadora...
... um dia a loucura virá plo seu próprio pé bater à tua porta, e tu, desprevenido, e tu sem mãos para a esganar, porque a loucura já será maior do que na palma da tua mão, porque a loucura será maior do que as tuas mãos, porque a loucura poderá mais do que tu com as tuas mãos; e ella fará de ti o pior de todos, por não teres sabido servir-te d'ella como tu devias sabe-lo querer!"

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

"O que os homens dizem e o que as mulheres ouvem", de Linda Papadopoulos

Todos somos diferentes, agindo de maneiras diferentes com diferentes intenções. Mas há algo que é comum, a necessita de percebermos os outros e encontrarmos justificação para os seus actos. Ao interpretarmos o outro, cometemos muitos erros que conduzem a desilusões e equívocos desnecessários.

As diferenças entre sexos serão sempre apregoadas, e a realidade é que homens e mulheres agem naturalmente de modos diferentes. Este livro torna-se muito interessante ao mostrar situações que acontecem muitas vezes e que são muito engraçadas, mostrando que talvez o melhor seja viver a situações, e não passar o tempo a tentar interpretá-las.

"Como seres sociais, criamos enormes abismos entre o que dizemos e o que os outros ouvem.Isto é verdade para qualquer conversa, mas é particularmente o caso quando a pessoa com quem conversamos é a que mais amamos, aquela que sentimos que melhor deveria compreender-nos. Mas é precisamente no contexto das relações pessoais que precisamos de fazer todos os esforços para nos compreendermos realmente uns aos outros e para percebermos que a forma como interpretamos o que está a ser dito se baseia, em grande parte, em crenças preexistentes, que mantemos acerca de nós mesmos e do mundo que nos rodeia; nem sempre na intenção do outro.", In O que os homens dizem e o que as mulheres ouvem

"Leite Derramado", de Chico Buarque

Quando se chega a uma idade avançada, a mais provável realidade prende-se com a dependência de profissionais de saúde na satisfação das necessidades mais básicas. O sofrimento, a dor, a nostalgia são uma constante, difícil de compreender pelos mais novos e impossível de aceitar pelos que sofrem.
O passado é a única fonte de felicidade, porque o presente pouco ou nada é em termos de qualidade de vida, e o futuro uma palavra que não existe. A memória começa a falhar, por vezes mais do que seria normal.

"Na velhice a gente dá para repetir casos antigos, porém jamais com a mesma precisão, porque cada lembrança já é uma remendo de lembrança anterior.", In Leite Derramado

Mais do que nunca surge a necessidade de ter alguém que ouça as histórias e experiências que há para contar. Os amores e desamores, os ensinamentos, as peripécias, os erros, as traquinices. Infelizmente, o mais comum é já não haver ninguém para ouvir, ou mesmo que haja, mais tarde ou mais cedo acaba por se fartar de ouvir sempre as mesmas histórias. Os profissionais de saúde, são quase sempre o último recurso, a última esperança para quem não tem ninguém a quem falar. Uma enfermeira que surge e dá atenção ao doente que não tem ninguém, é muitas vezes idealizada por este como o amor que há muito perdeu e permite que o seu sonho continue, a sua utopia de voltar a viver o amor e tudo o que ele implica.

"Com o tempo aprendi que o ciúme é um sentimento para proclamar de peito aberto, no instante mesmo de sua origem. Porque ao nascer, ele é realmente um sentimento cortês, deve ser logo oferecido à mulher como uma rosa. Senão, no instante seguinte ele se fecha em repolho, e dentro dele todo o mal fermenta. O ciúme é então a espécie mais introvertida das invejas, e mordendo-se todo, põe nos outros a culpa da sua feiura.", In Leite Derramado

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

"A Senhora das especiarias", de Divakaruni

Uma história com uma grande componente oriental e um gosto requintado das mais fantásticas especiarias, em que a personagem principal renuncia à beleza e à juventude em prol do seu amor pelas especiarias, vivendo numa sociedade completamente diferente daquela de que é originária.
Passa a vida a tentar resistir ao que lhe é proibido, ao amor, ao desejo, à possibilidade de viver com um homem, a sair à rua, a conhecer a realidade do mundo que a rodeia.

"É sempre assim quando penetramos no mundo proibido a que alguns chamam pecado? Dou o primeiro passo, a custo, sem fôlego. O segundo também faz doer, mas já não tanto. Com o terceiro a dor passa pelo nosso corpo como uma nuvem de chuva. Pouca falta para que nos não dê descanso, ou dor.", In A Senhora das Especiarias

Será possível imaginar a vida sem identidade? Ou melhor, sem um nome fixo, que nos identifique desde sempre e para sempre? Mesmo assim, carregar as exigências, expectativas e regras de um nome que nasceu ele próprio contra as regras. Dar mas não poder receber, não parece justo, nem suportável para sempre.

"Todavia, eu nunca fora abraçada. Nem pelo meu pai nem pela minha mãe. Nem pelas mestras minhas irmãs. Nem sequer pela velha, não desta maneira, com os corações colados um ao outro. Eu, Tilo, a criança que nunca podia chorar, a mulher que nunca haveria de chorar. Sorrio por entre as lágrimas quando o aroma da sua pele me enche e o seu bafo quente pousa nas minhas pálpebras. Os meus ossos derretem-se com este desejo de ser abraçada, eu que nunca julgara desejar a protecção dos braços de um homem.", In A Senhora das Especiarias

Por uma experiência, um sonho, por vezes arrisca-se tudo. E neste caso, quem manda na sorte não é a Mestra, mas sim as Especiarias.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

"Budapeste", de Chico Buarque

Para além de cantor, Chico Buarque revelou-se também um óptimo escritor e brinda-nos com esta história, em que a personagem principal também é escritor, mas que não assina os seus escritos, antes pelo contrário, o seu trabalho é mesmo escrever textos que serão patenteados por outras pessoas.
Uma vida feita de grandes mudanças, mas em que permanece a obsessão pela escrita e pela linguagem, e o amor que o prende a um país que não o seu, não só o de uma mulher, mas também o amor associado a uma língua que pretende dominar na perfeição.
"Para algum imigrante, o sotaque pode ser uma desforra, um modo de maltratar a língua que o constrange. Da língua que não estima, ele mastigará as palavras bastantes ao seu ofício e ao dia-a-dia, sempre as mesmas palavras, nem uma a mais. E mesmo essas, haverá de esquecer no fim da vida, para voltar ao vocabulário da infância. Assim como se esquece o nome de pessoas próximas, quando a memória começa a perder água, como uma piscina se esvazia aos poucos, como se esquece o dia de ontem e se retêm as lembranças mais profundas. Mas para quem adoptou uma nova língua, como a uma mãe que seleccionasse, para quem procurou e amou todas as suas palavras, a persistência de um sotaque era um castigo injusto", In Budapeste
O leitor Português que opte pela versão Português do Brasil, muito provavelmente verificará ao longo do livro que o seu raciocínio começa a ser feito em Brasileiro, porque é inevitável não reparar nas diferenças ao nível da construção frásica e de alguns conceitos.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

"O Processo", de Kafka

Ao ler esta obra é impossível o nosso pensamento não remeter para o estado da justiça em Portugal, sendo que as comparações são inevitáveis, não só por semelhanças, mas também por diferenças.
De qualquer modo, alguns aspectos descritos atribuem um carácter de intemporalidade à obra, e uma metáfora da realidade, por vezes hiperbolizada e outras vezes implícita.
“Neste género de discursos o advogado era inesgotável. Repetiam-se em todas as visitas. Havia sempre progressos, mas nunca a natureza destes progressos podia ser comunicada. Trabalhava-se incessantemente no primeiro requerimento, mas não estava terminado, o que, aquando da visita seguinte, se revelava a maior parte das vezes uma bênção, porque, sem que se pudesse prever, a ocasião teria sido particularmente mal escolhida para apresentar o requerimento. Se K., esgotado com estes discursos, observava por vezes que mesmo levando em conta todas as dificuldades, as coisas avançavam com lentidão, mas que estariam sem dúvida muito mais longe se K. se tivesse dirigido ao advogado na devida altura”, In O Processo
É comum dizer-se que todo indivíduo é inocente até que seja efectivamente provada a sua culpa, o que na prática não acontece, dado que a partir do momento em que há uma suspeita, a maior parte das pessoas que rodeiam o individuo passam a olhá-lo com alguma reticência e quando ele diz: “Estou inocente”, a resposta em surdina é: “Todos dizem o mesmo”.
Inocente ou culpado?

quinta-feira, 2 de julho de 2009

"Desassossego", de Fernando Pessoa

Uma obra de grande qualidade, que nos transporta para uma outra dimensão. Ao lermos na primeira pessoa, é inevitável que incorporemos aquilo que estamos a ler e sintamos mais do que seria esperado, sendo que não vivemos, mas sim imaginamos que vivemos através das palavras de alguém que também imaginou viver o que nos é descrito.
Os pensamentos tornam-se realidade ao tomarem a forma de palavras escritas, e a sua imortalidade uma consequência. E não importa a forma como são escritos, mas sim os sentimentos que despertam.
"A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação. O que sinto, na verdadeira substância com que o sinto, é absolutamente incomunicável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais incomunicável é. Para que eu, pois, possa transmitir a outrem o que sinto, tenho que traduzir os meus sentimentos na linguagem dele, isto é, que dizer tais coisas como sendo as que eu sinto, que ele, lendo-as, sinta exactamente o que eu senti. E como este outrém é, por hipótese de arte, não esta ou aquela pessoa, mas toda a gente, isto é, aquela pessoa que é comum a todas as pessoas, o que, afinal, tenho que fazer é converter os meus sentimentos num sentimento humano típico, ainda que pervertendo a verdadeira natureza daquilo que senti", In O livro do desassossego