quarta-feira, 22 de julho de 2009

"Budapeste", de Chico Buarque

Para além de cantor, Chico Buarque revelou-se também um óptimo escritor e brinda-nos com esta história, em que a personagem principal também é escritor, mas que não assina os seus escritos, antes pelo contrário, o seu trabalho é mesmo escrever textos que serão patenteados por outras pessoas.
Uma vida feita de grandes mudanças, mas em que permanece a obsessão pela escrita e pela linguagem, e o amor que o prende a um país que não o seu, não só o de uma mulher, mas também o amor associado a uma língua que pretende dominar na perfeição.
"Para algum imigrante, o sotaque pode ser uma desforra, um modo de maltratar a língua que o constrange. Da língua que não estima, ele mastigará as palavras bastantes ao seu ofício e ao dia-a-dia, sempre as mesmas palavras, nem uma a mais. E mesmo essas, haverá de esquecer no fim da vida, para voltar ao vocabulário da infância. Assim como se esquece o nome de pessoas próximas, quando a memória começa a perder água, como uma piscina se esvazia aos poucos, como se esquece o dia de ontem e se retêm as lembranças mais profundas. Mas para quem adoptou uma nova língua, como a uma mãe que seleccionasse, para quem procurou e amou todas as suas palavras, a persistência de um sotaque era um castigo injusto", In Budapeste
O leitor Português que opte pela versão Português do Brasil, muito provavelmente verificará ao longo do livro que o seu raciocínio começa a ser feito em Brasileiro, porque é inevitável não reparar nas diferenças ao nível da construção frásica e de alguns conceitos.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

"O Processo", de Kafka

Ao ler esta obra é impossível o nosso pensamento não remeter para o estado da justiça em Portugal, sendo que as comparações são inevitáveis, não só por semelhanças, mas também por diferenças.
De qualquer modo, alguns aspectos descritos atribuem um carácter de intemporalidade à obra, e uma metáfora da realidade, por vezes hiperbolizada e outras vezes implícita.
“Neste género de discursos o advogado era inesgotável. Repetiam-se em todas as visitas. Havia sempre progressos, mas nunca a natureza destes progressos podia ser comunicada. Trabalhava-se incessantemente no primeiro requerimento, mas não estava terminado, o que, aquando da visita seguinte, se revelava a maior parte das vezes uma bênção, porque, sem que se pudesse prever, a ocasião teria sido particularmente mal escolhida para apresentar o requerimento. Se K., esgotado com estes discursos, observava por vezes que mesmo levando em conta todas as dificuldades, as coisas avançavam com lentidão, mas que estariam sem dúvida muito mais longe se K. se tivesse dirigido ao advogado na devida altura”, In O Processo
É comum dizer-se que todo indivíduo é inocente até que seja efectivamente provada a sua culpa, o que na prática não acontece, dado que a partir do momento em que há uma suspeita, a maior parte das pessoas que rodeiam o individuo passam a olhá-lo com alguma reticência e quando ele diz: “Estou inocente”, a resposta em surdina é: “Todos dizem o mesmo”.
Inocente ou culpado?

quinta-feira, 2 de julho de 2009

"Desassossego", de Fernando Pessoa

Uma obra de grande qualidade, que nos transporta para uma outra dimensão. Ao lermos na primeira pessoa, é inevitável que incorporemos aquilo que estamos a ler e sintamos mais do que seria esperado, sendo que não vivemos, mas sim imaginamos que vivemos através das palavras de alguém que também imaginou viver o que nos é descrito.
Os pensamentos tornam-se realidade ao tomarem a forma de palavras escritas, e a sua imortalidade uma consequência. E não importa a forma como são escritos, mas sim os sentimentos que despertam.
"A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação. O que sinto, na verdadeira substância com que o sinto, é absolutamente incomunicável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais incomunicável é. Para que eu, pois, possa transmitir a outrem o que sinto, tenho que traduzir os meus sentimentos na linguagem dele, isto é, que dizer tais coisas como sendo as que eu sinto, que ele, lendo-as, sinta exactamente o que eu senti. E como este outrém é, por hipótese de arte, não esta ou aquela pessoa, mas toda a gente, isto é, aquela pessoa que é comum a todas as pessoas, o que, afinal, tenho que fazer é converter os meus sentimentos num sentimento humano típico, ainda que pervertendo a verdadeira natureza daquilo que senti", In O livro do desassossego