quinta-feira, 7 de outubro de 2010

"As velas ardem até ao fim...", Sándor Márai

Esta obra é o reflexo do homem, das suas relações, da amizade, do amor, da traição. Há sempre tantas coisas que ficam por dizer, acontecimentos que não se conseguem explicar, verdades que não sabemos se o são, dúvidas que permanecerão connosco até ao nosso fim. É com o passar dos anos que nos vamos conhecendo e aos outros, que a nossa existência se define e que as coisas adquirem outros significados.

"É a maior tragédia, com que o destino pode castigar o homem. O desejo de ser outro, diferente daquilo que somos: não pode arder um desejo mais doloroso no coração humano. Porque não é possível suportar a vida de outra maneira, apenas sabendo que nos conformamos com aquilo que significamos para nós próprios e para o mundo. Temos de nos conformar com aquilo que somos e ter consciência, quando nos conformamos, de que em troca dessa sabedoria, não recebemos elogios da vida, não nos põem no peito nenhuma condecoração por sabermos e aceitarmos que somos vaidosos ou egoístas, carecas e barrigudos - não, temos de saber que por nada disso recebemos recompensas, nem louvores. Temos de suportar, o segredo é isso. Temos de suportar o nosso carácter, o nosso temperamento, já que os seus defeitos, egoísmos e avidez, não os mudam nem a experiência, nem a compreensão. Temos de suportar que as pessoas que amamos, não nos amem como gostaríamos. Temos de suportar a traição e a infidelidade, e o que é o mais difícil entre todas as tarefas humanas, temos de suportar a superioridade moral ou intelectual de uma outra pessoa.", Sándor Márai

Para quem acha que não é nos livros que se aprende a ser pessoa, este livro é a prova de que "não só, mas também" são os livros que nos ensinam a viver.

sábado, 19 de junho de 2010

"Para Sempre", Vergílio Ferreira

Para Sempre. Uma obra de um dos autores que ficará "Para Sempre" na história da literatura portuguesa. A busca por uma palavra, através de tantas palavras que conjugadas se traduzem numa riqueza que só pode ser verdadeiramente percepcionada na experiência de leitura desta magnífica obra. A exploração do que somos e do que nos condiciona.

"Quem sou? Tem piada, não me lembro de jamais mo perguntar - quem sou? E desde quando comecei a sê-lo? Deve ser útil sabê-lo, que é que está dentro de mim? para ao menos saber o que vou entregar à morte. Acaso saberei jamais quem sou? ou o que sou, que é um pouco para cá disso? E que é que sou, fora do que fui sendo? Que é que perdura em mim do que fui sendo? Que é que perdura em mim do que fui sendo? O que sou, é curioso, o que sou é. Não sei. (...)Tenho horror de mim. Precisava de me desfazer em cuspo, em choro e ranho, estoirar-me todo num arranco. E ficar depois a apodrecer. Não me movo. Sou um homem. Tenho obrigações imprescritíveis diante do sexo macho a que pertenço. Como é triste o dever. Queria não ter um dever. Perante quem o dever? Estás só. Baba e ranho se te apetece. E como depois respeitar-me? Tenho um olho viril de mim a fiscalizar-me a desordem. Estou só. Definitivamente até à morte. Estou triste até à morte."

sexta-feira, 14 de maio de 2010

"Carta ao pai", Franz Kafka

O nome desta obra não engana, e o consagrado nome do autor não deixa dúvidas quanto à qualidade da obra. Uma expressão de sentimentos e emoções, o partilhar as dúvidas, os ressentimentos, os actos que condicionaram todo o seu desenvolvimento pessoal. Uma tentativa de dizer por escrito, sem o intuito de magoar, aquilo que se vem arrastando ao longo do tempo numa voz que não quer sair.

"A dá a B um conselho sincero, de acordo com a sua concepção de vida, não muito bonito mas contudo ainda hoje muito vulgar na cidade e que talvez evite algumas doenças. O conselho não é, do ponto de vista moral, muito reconfortante para B, mas não há razão nenhuma para que não consiga sair do dano que lhe foi causado; aliás, nem tem que seguir o conselho, e de qualquer maneira não há nada no conselho que justifique que o futuro se venha a desmoronar sobre B. E no entanto qualquer coisa de parecido se passa, mas só porque és A e eu sou B."

Ao longo dos anos amontoam-se coisas que não ganham coragem suficiente para seguir o seu rumo, e vão ficando nas gavetas do sofrimento e da sensação de fracasso.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

"Desespero", Vladimir Nobokov

Todos podemos ser personagens de uma história, os actores principais de uma acção, passar de meros leitores a fundamentais participantes na obra que lemos. Não depende só de nós, mas fundamentalmente do autor, e da sua disponibilidade para nos receber, e capacidade para demonstrar essa receptividade.

"O sonho mais querido de um autor é transformar o leitor num espectador; consegui-lo-á alguma vez? Os pálidos organismos dos heróis literários, alimentados sob a supervisão do autor, incham gradualmente com o sangue vital do leitor; de modo que o génio de um escritor consiste em dar-lhes a faculdade de se adaptarem a esse - não muito apetitoso - alimento e prosperarem com ele, às vezes durante séculos."
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Quando se apodera de nós o desespero, haverá limites para as nossas acções? Não é o bem que nos preocupa, mas sim o mal que pode advir de uma acção realizada de acordo com a situação negativa em que nos encontramos num dado momento. São momentos em que cometemos os maiores crimes e comprometemos toda uma existência. Se somos punidos ou não, isso já não depende de nós.

"Supunhamos que eu mato um macaco. Ninguém me toca. Supunhamos que é um macaco particularmente inteligente. Ninguém me toca. Supunhamos que é um novo macaco - uma espécie sem pêlos e que fala. Ninguém me toca. Subindo circunspectamente estes degraus subtis, posso chegar até Leibnitz ou Shakespeare e matá-los, e ninguém me tocará, porque é impossível dizer onde foi atravessada a fronteira, para além da qual o sofista se vê em apuros."

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

"O eterno marido", Fiódor Dostoievski

Quando o sentimento de culpa é uma realidade, qualquer observação por parte do outro pode levar-nos a crer que tem conhecimento de que somos culpados e que não nos confronta por algum motivo inexplicável, ou simplesmente por desejo de vingança.
O amante vive sempre nessa dúvida, nessa suspeição de que o marido tenha conhecimento da traição. A própria morte da figura do pecado, e a distância temporal, não apaga a dúvida constante.
E se o marido sabe e sempre soube, porque permitiu? Ele tem essa vantagem, é o marido, e talvez também essa necessidade, por vezes mais social do que emocional, de ser marido o leve a tolerar muitas coisas que noutro caso não seriam sequer equacionáveis.
Haverá um momento em que é tomada uma decisão fatal?

"(...) a alteração, e mesmo a duplicidade, dos pensamentos e sentimentos durante a insónia nocturna seria um facto geral e próprio das pessoas «que pensam e sentem muito» e que, às vezes, as convicções de toda uma vida mudavam de repente sob a influência melancólica da noite e da insónia: eram tomadas, sem mais nem menos, decisões de carácter fatal; apesar disso, claro, tudo tem os seus limites - se o individuo acaba por sentir em demasia tal duplicidade, a ponto de as coisas chegarem ao sofrimento, isso já é sintoma de doença, pelo que se torna necessário tomar de imediato algumas medidas. O melhor será mudar radicalmente o modo de vida, de dieta ou, até, empreender uma viagem".

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

"Alegria Breve", Vergílio Ferreira

Uma grande obra de um dos maiores autores portugueses, cujo valor nem sempre tem sido devidamente reconhecido. Uma escrita "melódica", em que os sons e os silêncios são enaltecidos. "Alegria Breve" é a vida, e também a morte, o envelhecimento, a solidão, as experiências passadas, o que podia ter sido mas não chegou a ser, o corpo e a alma, o mundo que nunca foi nosso, apenas emprestado e retirado a qualquer instante.

"Estou velho. Há o sol e a neve e a aldeia deserta. O meu corpo o sabe, na humildade do seu cansaço, do seu fim. Alegria breve, este meu sabê-lo, esta posse de todo o milagre de eu ser e a deposição disso para o estrume da terra. Sento-me ao sol, aqueço. Estou só, terrivelmente povoado de mim. Valeu a pena viver? Matei a curiosidade, vim ver como isto era, valeu a pena. É engraçada a vida e a morte. Tem a sua piada, oh, se tem. Vim saber como isto era e soube coisas fantásticas. Vi a luz, a terra, os animais. Conheci o meu corpo em que apareci. É curioso um corpo. tem mãos, pés, nove buracos. Meteram-me nele, nunca mais o pude despir, como um cão à cor do pêlo que lhe calhou. É um corpo grande, um metro e oitenta e tal. É o meu corpo. Calhou-me. Movo as mãos, os pés, e é como se fossem meus e não fossem. É extraordinário, fantástico, um corpo. Com ele e nele tomei posse e conhecimento de coisas espantosas. Não seria uma pena não ter nascido? Ficava sem saber. Dirás tu: de que te serve se amanhã já não sabes? É certo. Mas agora sei. De que servem os prazeres que já tive e nunca mais poderei ter? Não servem de nada, serviram."

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

"O anatomista", Frederico Andahazi

Tentar conhecer a mulher e a forma de conquistar o seu amor, através da ciência não será certamente tarefa fácil. Uma obra em que se fala sem pudor de uma das componentes mais importantes do ser humano, a sexualidade, e que tem como foco a descoberta de um dos órgãos que suscita maior curiosidade na anatomia feminina, o «Amor Veneris», mais conhecido como clitóris. Será que esta descoberta é a chave para conseguir abrir o coração da mulher que se ama? Estará afinal a alma feminina dependente da acção que se exerce no seu corpo? Haverá salvação possível para aquele que ousa conhecer o motor de supremo prazer? Conseguiremos realmente explicar as paixões?

"Pensa-se erroneamente que são as paixões que nos conduzem ao pecado da carne. A tentação que neste pecado acaba nada tem a ver com as paixões, mas sim com as acções precisamente, pois trata-se de um pecado cuja origem está no corpo. Devemos, pois, diferenciar o amor, que é um puro atributo da alma, do impulso sexual. O amor é uma paixão, pois tem a sua origem e o seu fim na própria alma, ao passo que o impulso sexual se inicia e se completa no corpo. Não existe, pois, nenhum órgão que sirva nem para produzir nem para extinguir o amor, ao passo que o impulso sexual tem uma localização corporal evidente tanto na origem como no fim."
O verdadeiro prazer pode ser encontrado com a leitura desta obra!

"o apocalipse dos trabalhadores", valter hugo mãe

escrito totalmente em minúsculas, por um escritor cuja escrita manual é curiosamente em maiúsculas, um livro que nos mostra a inevitabilidade de fugir ao destino, que é a morte. uma palavra com uma conotação negativa, mas que não negativiza esta obra, porque não é retratada como um drama, tendo bem presente a crítica disfarçada através do humor. não sabemos o que existe para além da morte, se é que existe alguma coisa, e por isso somos livres de criar um mundo que não conhecemos.


"de noite, a maria da graça sonhava que às portas do céu se vendiam souvenirs da vida na terra. dente de palavras garridas que chamava a sua atenção com os braços no ar, como quem tinha peixe fresco, juntava-se em redor da sua alma e despachava por bagatelas as coisas mais passíveis de suprir uma grande falta aos que morriam. os últimos charlatães, pensava ela, envergonhada até por ter de pensar depois de morta, ou que talvez fosse coisa boa antes de se entrar no céu ser dada a oportunidade de levar um objecto, uma imagem materializada, algo como prova de uma vida anterior ou extrema saudade. ela pedia-lhes que a deixassem passar, ia à pressa, insistia, sabia mal o que fazer e não podia decidir nada sobre nada. seguia perplexa e não querendo arriscar a ganância de se depositar na eternidade a partir de um acto de posse. por uma compreensível angústia, ansiedade ou frenesi de ali estar tão pela primeira vez, mantinha a esperança de que talvez são pedro a esclarecesse e, com um pé lá dentro e outro ainda fora, lhe fosse possível comprar o requiem de mozart, a reprodução dos frescos de goya ou a edição francesa das raparigas em flor."

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

"A geração da utopia", Pepetela

Uma guerra igual a tantas outras, em que os ideais se desfazem ao longo do tempo. Neste livro retrata-se a luta Angolana contra o colonialismo, com ênfase no Movimento Popular de Libertação de Angola. A obra está dividida em quatro partes, sendo que a primeira coincide com o início da luta da armada (1961), e a última parte é localizada já nos anos noventa, sendo acompanhado o percurso de vida de um grupo de jovens, que defende o seu país. O amor a uma nação, também retratado através do amor entre as pessoas que a constituem, e a espera que é feita para que seja possível desfrutar da plenitude do que ele pode proporcionar.

“ (…) todos nós a um dado momento éramos puros e queríamos fazer uma coisa diferente. Pensávamos que íamos construir uma sociedade justa, sem diferenças, sem privilégios, sem perseguições, uma comunidade de interesses e pensamentos, o Paraíso dos cristãos, em suma. A um momento dado, mesmo que muito breve nalguns casos, fomos puros, desinteressados, só pensando no povo e lutando por ele. E depois…tudo se adulterou, tudo apodreceu, muito antes de se chegar ao poder. Cada um começou a preparar as bases de lançamento para esse poder, a defender posições particulares, egoístas. A utopia morreu. E hoje cheira mal, como qualquer corpo em putrefacção. Dela só resta um discurso vazio.”

"A arte de bem matar horas", Manuel Maia

Com uma linguagem muito acessível e com um registo francamente humorístico, em que se brinca com as palavras e o sentido que elas podem tomar em diferentes contextos, e que podem levar a grandes incomunicações. Tem uma particularidade, o facto de termos conhecimento dos dois lados de uma história completamente banal, mas que ao não ser retratada com sentimentalismo e romantismo exacerbados, adquire uma maior proximidade com a realidade.

“Dizem os senhores professores que a paixão emerge do inconsciente, consiste na atracção por um gesto, uma imagem, uma fantasia infantil, sem ter verdadeiramente a ver com a pessoa objecto dessa mesma paixão, a qual é idealizada. Surge depois – ou não – o amor, fruto de um confronto dessa imagem com a realidade, quando se descobre que a pessoa por quem estávamos apaixonados era – ou não – aquela que desejávamos. No fundo, o amor tem de resistir à realidade.”

sábado, 2 de janeiro de 2010

"Justine ou o infortúnio da virtude", Marquês de Sade

Uma obra que nos mostra quão difíceis e malogrados podem ser os caminhos da virtude, e os extremos a que uma pessoa pode chegar na tentativa de obter o máximo de prazer possível dos outros, sem sofrer as devidas punições. Apesar de todo o contexto, o modo como a descrição é feita e a linguagem usada suaviza os sentimentos que podem ser desencadeados no leitor.

“A emoção da volúpia é, no nosso espírito, uma vibração produzida através dos choques que a imaginação inflamada pela lembrança de um objecto lúbrico faz experimentar aos nossos sentidos, ou então através da presença desse mesmo objecto, ou melhor ainda pela irritação que esse objecto sentir com o género que mais facilmente nos arrebata; deste modo, a nossa volúpia, essa inexprimível sensação que nos faz delirar, que nos iça ao mais alto ponto de felicidade que o homem pode alcançar, só pode incendiar-se mediante duas causas: uma é observando real ou ficticiamente no objecto que nos serve a espécie de beleza que mais nos comove, a outra é vendo esse objecto experimentar a mais forte sensação possível; ora não existe sensação mais forte do que a sensação de dor; as suas impressões são exactas, não são enganosas como as de prazer constantemente fingidas pelas mulheres e quase nunca realmente sentidas; é, de resto, preciso muito amor próprio, muita juventude, força e saúde para se ter a certeza de provocar numa mulher essa impressão duvidosa e pouco satisfatória de prazer. A sensação de dor, pelo contrário, nada exige (…) aquele, portanto, que numa mulher tiver provocado a impressão mais tumultuosa, o que mais transtornada consiga deixar a sua organização, é esse, indubitavelmente, o que obtém maior dose de volúpia, porque o choque resultante das impressões dos outros sobre nós, devendo ser em razão da impressão produzida, será necessariamente mais activo, se essa impressão dos outros for dolorosa, do que se for suave e branda; a partir daí, o voluptuoso egoísta, uma vez convencido de que os seus prazeres só serão vivos quando inteiros, deverá impor, quando para isso tenha autoridade, a maior dose possível de dor ao objecto que o serve, na certeza de que a volúpia obtida tem relação directa com a impressão viva que tiver produzido.”