terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

"Alegria Breve", Vergílio Ferreira

Uma grande obra de um dos maiores autores portugueses, cujo valor nem sempre tem sido devidamente reconhecido. Uma escrita "melódica", em que os sons e os silêncios são enaltecidos. "Alegria Breve" é a vida, e também a morte, o envelhecimento, a solidão, as experiências passadas, o que podia ter sido mas não chegou a ser, o corpo e a alma, o mundo que nunca foi nosso, apenas emprestado e retirado a qualquer instante.

"Estou velho. Há o sol e a neve e a aldeia deserta. O meu corpo o sabe, na humildade do seu cansaço, do seu fim. Alegria breve, este meu sabê-lo, esta posse de todo o milagre de eu ser e a deposição disso para o estrume da terra. Sento-me ao sol, aqueço. Estou só, terrivelmente povoado de mim. Valeu a pena viver? Matei a curiosidade, vim ver como isto era, valeu a pena. É engraçada a vida e a morte. Tem a sua piada, oh, se tem. Vim saber como isto era e soube coisas fantásticas. Vi a luz, a terra, os animais. Conheci o meu corpo em que apareci. É curioso um corpo. tem mãos, pés, nove buracos. Meteram-me nele, nunca mais o pude despir, como um cão à cor do pêlo que lhe calhou. É um corpo grande, um metro e oitenta e tal. É o meu corpo. Calhou-me. Movo as mãos, os pés, e é como se fossem meus e não fossem. É extraordinário, fantástico, um corpo. Com ele e nele tomei posse e conhecimento de coisas espantosas. Não seria uma pena não ter nascido? Ficava sem saber. Dirás tu: de que te serve se amanhã já não sabes? É certo. Mas agora sei. De que servem os prazeres que já tive e nunca mais poderei ter? Não servem de nada, serviram."

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