quinta-feira, 7 de outubro de 2010

"As velas ardem até ao fim...", Sándor Márai

Esta obra é o reflexo do homem, das suas relações, da amizade, do amor, da traição. Há sempre tantas coisas que ficam por dizer, acontecimentos que não se conseguem explicar, verdades que não sabemos se o são, dúvidas que permanecerão connosco até ao nosso fim. É com o passar dos anos que nos vamos conhecendo e aos outros, que a nossa existência se define e que as coisas adquirem outros significados.

"É a maior tragédia, com que o destino pode castigar o homem. O desejo de ser outro, diferente daquilo que somos: não pode arder um desejo mais doloroso no coração humano. Porque não é possível suportar a vida de outra maneira, apenas sabendo que nos conformamos com aquilo que significamos para nós próprios e para o mundo. Temos de nos conformar com aquilo que somos e ter consciência, quando nos conformamos, de que em troca dessa sabedoria, não recebemos elogios da vida, não nos põem no peito nenhuma condecoração por sabermos e aceitarmos que somos vaidosos ou egoístas, carecas e barrigudos - não, temos de saber que por nada disso recebemos recompensas, nem louvores. Temos de suportar, o segredo é isso. Temos de suportar o nosso carácter, o nosso temperamento, já que os seus defeitos, egoísmos e avidez, não os mudam nem a experiência, nem a compreensão. Temos de suportar que as pessoas que amamos, não nos amem como gostaríamos. Temos de suportar a traição e a infidelidade, e o que é o mais difícil entre todas as tarefas humanas, temos de suportar a superioridade moral ou intelectual de uma outra pessoa.", Sándor Márai

Para quem acha que não é nos livros que se aprende a ser pessoa, este livro é a prova de que "não só, mas também" são os livros que nos ensinam a viver.

sábado, 19 de junho de 2010

"Para Sempre", Vergílio Ferreira

Para Sempre. Uma obra de um dos autores que ficará "Para Sempre" na história da literatura portuguesa. A busca por uma palavra, através de tantas palavras que conjugadas se traduzem numa riqueza que só pode ser verdadeiramente percepcionada na experiência de leitura desta magnífica obra. A exploração do que somos e do que nos condiciona.

"Quem sou? Tem piada, não me lembro de jamais mo perguntar - quem sou? E desde quando comecei a sê-lo? Deve ser útil sabê-lo, que é que está dentro de mim? para ao menos saber o que vou entregar à morte. Acaso saberei jamais quem sou? ou o que sou, que é um pouco para cá disso? E que é que sou, fora do que fui sendo? Que é que perdura em mim do que fui sendo? Que é que perdura em mim do que fui sendo? O que sou, é curioso, o que sou é. Não sei. (...)Tenho horror de mim. Precisava de me desfazer em cuspo, em choro e ranho, estoirar-me todo num arranco. E ficar depois a apodrecer. Não me movo. Sou um homem. Tenho obrigações imprescritíveis diante do sexo macho a que pertenço. Como é triste o dever. Queria não ter um dever. Perante quem o dever? Estás só. Baba e ranho se te apetece. E como depois respeitar-me? Tenho um olho viril de mim a fiscalizar-me a desordem. Estou só. Definitivamente até à morte. Estou triste até à morte."

sexta-feira, 14 de maio de 2010

"Carta ao pai", Franz Kafka

O nome desta obra não engana, e o consagrado nome do autor não deixa dúvidas quanto à qualidade da obra. Uma expressão de sentimentos e emoções, o partilhar as dúvidas, os ressentimentos, os actos que condicionaram todo o seu desenvolvimento pessoal. Uma tentativa de dizer por escrito, sem o intuito de magoar, aquilo que se vem arrastando ao longo do tempo numa voz que não quer sair.

"A dá a B um conselho sincero, de acordo com a sua concepção de vida, não muito bonito mas contudo ainda hoje muito vulgar na cidade e que talvez evite algumas doenças. O conselho não é, do ponto de vista moral, muito reconfortante para B, mas não há razão nenhuma para que não consiga sair do dano que lhe foi causado; aliás, nem tem que seguir o conselho, e de qualquer maneira não há nada no conselho que justifique que o futuro se venha a desmoronar sobre B. E no entanto qualquer coisa de parecido se passa, mas só porque és A e eu sou B."

Ao longo dos anos amontoam-se coisas que não ganham coragem suficiente para seguir o seu rumo, e vão ficando nas gavetas do sofrimento e da sensação de fracasso.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

"Desespero", Vladimir Nobokov

Todos podemos ser personagens de uma história, os actores principais de uma acção, passar de meros leitores a fundamentais participantes na obra que lemos. Não depende só de nós, mas fundamentalmente do autor, e da sua disponibilidade para nos receber, e capacidade para demonstrar essa receptividade.

"O sonho mais querido de um autor é transformar o leitor num espectador; consegui-lo-á alguma vez? Os pálidos organismos dos heróis literários, alimentados sob a supervisão do autor, incham gradualmente com o sangue vital do leitor; de modo que o génio de um escritor consiste em dar-lhes a faculdade de se adaptarem a esse - não muito apetitoso - alimento e prosperarem com ele, às vezes durante séculos."
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Quando se apodera de nós o desespero, haverá limites para as nossas acções? Não é o bem que nos preocupa, mas sim o mal que pode advir de uma acção realizada de acordo com a situação negativa em que nos encontramos num dado momento. São momentos em que cometemos os maiores crimes e comprometemos toda uma existência. Se somos punidos ou não, isso já não depende de nós.

"Supunhamos que eu mato um macaco. Ninguém me toca. Supunhamos que é um macaco particularmente inteligente. Ninguém me toca. Supunhamos que é um novo macaco - uma espécie sem pêlos e que fala. Ninguém me toca. Subindo circunspectamente estes degraus subtis, posso chegar até Leibnitz ou Shakespeare e matá-los, e ninguém me tocará, porque é impossível dizer onde foi atravessada a fronteira, para além da qual o sofista se vê em apuros."

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

"O eterno marido", Fiódor Dostoievski

Quando o sentimento de culpa é uma realidade, qualquer observação por parte do outro pode levar-nos a crer que tem conhecimento de que somos culpados e que não nos confronta por algum motivo inexplicável, ou simplesmente por desejo de vingança.
O amante vive sempre nessa dúvida, nessa suspeição de que o marido tenha conhecimento da traição. A própria morte da figura do pecado, e a distância temporal, não apaga a dúvida constante.
E se o marido sabe e sempre soube, porque permitiu? Ele tem essa vantagem, é o marido, e talvez também essa necessidade, por vezes mais social do que emocional, de ser marido o leve a tolerar muitas coisas que noutro caso não seriam sequer equacionáveis.
Haverá um momento em que é tomada uma decisão fatal?

"(...) a alteração, e mesmo a duplicidade, dos pensamentos e sentimentos durante a insónia nocturna seria um facto geral e próprio das pessoas «que pensam e sentem muito» e que, às vezes, as convicções de toda uma vida mudavam de repente sob a influência melancólica da noite e da insónia: eram tomadas, sem mais nem menos, decisões de carácter fatal; apesar disso, claro, tudo tem os seus limites - se o individuo acaba por sentir em demasia tal duplicidade, a ponto de as coisas chegarem ao sofrimento, isso já é sintoma de doença, pelo que se torna necessário tomar de imediato algumas medidas. O melhor será mudar radicalmente o modo de vida, de dieta ou, até, empreender uma viagem".

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

"Alegria Breve", Vergílio Ferreira

Uma grande obra de um dos maiores autores portugueses, cujo valor nem sempre tem sido devidamente reconhecido. Uma escrita "melódica", em que os sons e os silêncios são enaltecidos. "Alegria Breve" é a vida, e também a morte, o envelhecimento, a solidão, as experiências passadas, o que podia ter sido mas não chegou a ser, o corpo e a alma, o mundo que nunca foi nosso, apenas emprestado e retirado a qualquer instante.

"Estou velho. Há o sol e a neve e a aldeia deserta. O meu corpo o sabe, na humildade do seu cansaço, do seu fim. Alegria breve, este meu sabê-lo, esta posse de todo o milagre de eu ser e a deposição disso para o estrume da terra. Sento-me ao sol, aqueço. Estou só, terrivelmente povoado de mim. Valeu a pena viver? Matei a curiosidade, vim ver como isto era, valeu a pena. É engraçada a vida e a morte. Tem a sua piada, oh, se tem. Vim saber como isto era e soube coisas fantásticas. Vi a luz, a terra, os animais. Conheci o meu corpo em que apareci. É curioso um corpo. tem mãos, pés, nove buracos. Meteram-me nele, nunca mais o pude despir, como um cão à cor do pêlo que lhe calhou. É um corpo grande, um metro e oitenta e tal. É o meu corpo. Calhou-me. Movo as mãos, os pés, e é como se fossem meus e não fossem. É extraordinário, fantástico, um corpo. Com ele e nele tomei posse e conhecimento de coisas espantosas. Não seria uma pena não ter nascido? Ficava sem saber. Dirás tu: de que te serve se amanhã já não sabes? É certo. Mas agora sei. De que servem os prazeres que já tive e nunca mais poderei ter? Não servem de nada, serviram."

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

"O anatomista", Frederico Andahazi

Tentar conhecer a mulher e a forma de conquistar o seu amor, através da ciência não será certamente tarefa fácil. Uma obra em que se fala sem pudor de uma das componentes mais importantes do ser humano, a sexualidade, e que tem como foco a descoberta de um dos órgãos que suscita maior curiosidade na anatomia feminina, o «Amor Veneris», mais conhecido como clitóris. Será que esta descoberta é a chave para conseguir abrir o coração da mulher que se ama? Estará afinal a alma feminina dependente da acção que se exerce no seu corpo? Haverá salvação possível para aquele que ousa conhecer o motor de supremo prazer? Conseguiremos realmente explicar as paixões?

"Pensa-se erroneamente que são as paixões que nos conduzem ao pecado da carne. A tentação que neste pecado acaba nada tem a ver com as paixões, mas sim com as acções precisamente, pois trata-se de um pecado cuja origem está no corpo. Devemos, pois, diferenciar o amor, que é um puro atributo da alma, do impulso sexual. O amor é uma paixão, pois tem a sua origem e o seu fim na própria alma, ao passo que o impulso sexual se inicia e se completa no corpo. Não existe, pois, nenhum órgão que sirva nem para produzir nem para extinguir o amor, ao passo que o impulso sexual tem uma localização corporal evidente tanto na origem como no fim."
O verdadeiro prazer pode ser encontrado com a leitura desta obra!

"o apocalipse dos trabalhadores", valter hugo mãe

escrito totalmente em minúsculas, por um escritor cuja escrita manual é curiosamente em maiúsculas, um livro que nos mostra a inevitabilidade de fugir ao destino, que é a morte. uma palavra com uma conotação negativa, mas que não negativiza esta obra, porque não é retratada como um drama, tendo bem presente a crítica disfarçada através do humor. não sabemos o que existe para além da morte, se é que existe alguma coisa, e por isso somos livres de criar um mundo que não conhecemos.


"de noite, a maria da graça sonhava que às portas do céu se vendiam souvenirs da vida na terra. dente de palavras garridas que chamava a sua atenção com os braços no ar, como quem tinha peixe fresco, juntava-se em redor da sua alma e despachava por bagatelas as coisas mais passíveis de suprir uma grande falta aos que morriam. os últimos charlatães, pensava ela, envergonhada até por ter de pensar depois de morta, ou que talvez fosse coisa boa antes de se entrar no céu ser dada a oportunidade de levar um objecto, uma imagem materializada, algo como prova de uma vida anterior ou extrema saudade. ela pedia-lhes que a deixassem passar, ia à pressa, insistia, sabia mal o que fazer e não podia decidir nada sobre nada. seguia perplexa e não querendo arriscar a ganância de se depositar na eternidade a partir de um acto de posse. por uma compreensível angústia, ansiedade ou frenesi de ali estar tão pela primeira vez, mantinha a esperança de que talvez são pedro a esclarecesse e, com um pé lá dentro e outro ainda fora, lhe fosse possível comprar o requiem de mozart, a reprodução dos frescos de goya ou a edição francesa das raparigas em flor."

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

"A geração da utopia", Pepetela

Uma guerra igual a tantas outras, em que os ideais se desfazem ao longo do tempo. Neste livro retrata-se a luta Angolana contra o colonialismo, com ênfase no Movimento Popular de Libertação de Angola. A obra está dividida em quatro partes, sendo que a primeira coincide com o início da luta da armada (1961), e a última parte é localizada já nos anos noventa, sendo acompanhado o percurso de vida de um grupo de jovens, que defende o seu país. O amor a uma nação, também retratado através do amor entre as pessoas que a constituem, e a espera que é feita para que seja possível desfrutar da plenitude do que ele pode proporcionar.

“ (…) todos nós a um dado momento éramos puros e queríamos fazer uma coisa diferente. Pensávamos que íamos construir uma sociedade justa, sem diferenças, sem privilégios, sem perseguições, uma comunidade de interesses e pensamentos, o Paraíso dos cristãos, em suma. A um momento dado, mesmo que muito breve nalguns casos, fomos puros, desinteressados, só pensando no povo e lutando por ele. E depois…tudo se adulterou, tudo apodreceu, muito antes de se chegar ao poder. Cada um começou a preparar as bases de lançamento para esse poder, a defender posições particulares, egoístas. A utopia morreu. E hoje cheira mal, como qualquer corpo em putrefacção. Dela só resta um discurso vazio.”

"A arte de bem matar horas", Manuel Maia

Com uma linguagem muito acessível e com um registo francamente humorístico, em que se brinca com as palavras e o sentido que elas podem tomar em diferentes contextos, e que podem levar a grandes incomunicações. Tem uma particularidade, o facto de termos conhecimento dos dois lados de uma história completamente banal, mas que ao não ser retratada com sentimentalismo e romantismo exacerbados, adquire uma maior proximidade com a realidade.

“Dizem os senhores professores que a paixão emerge do inconsciente, consiste na atracção por um gesto, uma imagem, uma fantasia infantil, sem ter verdadeiramente a ver com a pessoa objecto dessa mesma paixão, a qual é idealizada. Surge depois – ou não – o amor, fruto de um confronto dessa imagem com a realidade, quando se descobre que a pessoa por quem estávamos apaixonados era – ou não – aquela que desejávamos. No fundo, o amor tem de resistir à realidade.”

sábado, 2 de janeiro de 2010

"Justine ou o infortúnio da virtude", Marquês de Sade

Uma obra que nos mostra quão difíceis e malogrados podem ser os caminhos da virtude, e os extremos a que uma pessoa pode chegar na tentativa de obter o máximo de prazer possível dos outros, sem sofrer as devidas punições. Apesar de todo o contexto, o modo como a descrição é feita e a linguagem usada suaviza os sentimentos que podem ser desencadeados no leitor.

“A emoção da volúpia é, no nosso espírito, uma vibração produzida através dos choques que a imaginação inflamada pela lembrança de um objecto lúbrico faz experimentar aos nossos sentidos, ou então através da presença desse mesmo objecto, ou melhor ainda pela irritação que esse objecto sentir com o género que mais facilmente nos arrebata; deste modo, a nossa volúpia, essa inexprimível sensação que nos faz delirar, que nos iça ao mais alto ponto de felicidade que o homem pode alcançar, só pode incendiar-se mediante duas causas: uma é observando real ou ficticiamente no objecto que nos serve a espécie de beleza que mais nos comove, a outra é vendo esse objecto experimentar a mais forte sensação possível; ora não existe sensação mais forte do que a sensação de dor; as suas impressões são exactas, não são enganosas como as de prazer constantemente fingidas pelas mulheres e quase nunca realmente sentidas; é, de resto, preciso muito amor próprio, muita juventude, força e saúde para se ter a certeza de provocar numa mulher essa impressão duvidosa e pouco satisfatória de prazer. A sensação de dor, pelo contrário, nada exige (…) aquele, portanto, que numa mulher tiver provocado a impressão mais tumultuosa, o que mais transtornada consiga deixar a sua organização, é esse, indubitavelmente, o que obtém maior dose de volúpia, porque o choque resultante das impressões dos outros sobre nós, devendo ser em razão da impressão produzida, será necessariamente mais activo, se essa impressão dos outros for dolorosa, do que se for suave e branda; a partir daí, o voluptuoso egoísta, uma vez convencido de que os seus prazeres só serão vivos quando inteiros, deverá impor, quando para isso tenha autoridade, a maior dose possível de dor ao objecto que o serve, na certeza de que a volúpia obtida tem relação directa com a impressão viva que tiver produzido.”

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

"Apocalipse Nau", de Rui Zink

Aproxima-se o fim do mundo. Este é o último dia das nossas vidas, mas tudo são apenas suposições, há quem acredite e quem não acredite, mas todos pensamos nisso. E numa família pouco convencional, repleta de problemas por resolver, umas horas é pouco tempo. E falhando a comunicação, falha tudo.
"Tele-fonar significa falar de longe. Não conseguir comunicar sem distância. Hoje as pessoas são todas tele-fónicas e tele-visíveis porque são todas perto-fóbicas. Se calhar foi por isso que o mestre decidiu pôr ponto final à brincadeira. Deixou de dar gozo gerir o inferno na Terra, tornou-se tão entediante como um disco riscado, a agulha não sai do sítio, ninguém fode nem sai de cima. Ninguém fode. Ninguém sai de cima, porque ninguém está em cima."
Rui Zink, nesta obra, faz-nos acreditar que realmente o mundo está prestes a acabar, mas de uma forma cómica, e deixa-nos presos por uma necessidade intrínseca de saber o desfecho da nossa própria história. Será mesmo o fim? É este o último livro que lemos? É este o último pensamento que temos? Estamos preparados para o nosso fim? É esta a nossa última oportunidade?
"A juventude perdida é isso mesmo: algo que não volta. Quem apanhou o barco a tempo, parabéns, os outros, os ácidos, os azedos, que se amanhem. Que façam o seu melhor para não se tornarem demasiado ácidos, para não ficarem com as vidas, as vidinhas, as videcas ulceradas até ao fim dos dias. E o fim é nunca se sabe quando. A morte não tem sentido de oportunidade, para ter essa noção era preciso viver dentro do tempo, e a morte é precisamente, por definição, o que está fora do tempo."

terça-feira, 1 de setembro de 2009

"Fernando Pessoa: O guardador de papéis", Org. Jerónimo Pizarro

Um livro para os amantes da obra e vida de Fernando Pessoa, em que se dá a conhecer uma outra vertente poucas vezes divulgada, mas provavelmente mais importante e mais reveladora da essência deste grande escritor. Ele vivia de tudo o que o rodeava e não se inibia de comentar os mais variados temas que se impunham na sua época.
"Pessoa não foi político, nem, de facto, politólogo ou sociólogo, no sentido que estes termos têm contemporâneamente, mas escreveu talvez mais de duas mil páginas sobre temas eminentemente políticos e sociológicos, das quais apenas uma pequena minoria viu a luz do dia em sua vida. As formas de «patologia social», a guerra e a paz, a grandeza e a decadência das nações, o radicalismo político, a opinião pública, o feminismo, o «preconceito revolucionário», a mentalidade e religiosidade populares, a relação do individuo e do estado, a «crença democrática», o «misticismo socialista» ou «bolchevista», o provincianismo, etc, são alguns dos muitos temas que interessam ao Pessoa «sociólogo» da política."

Para além disso, temos acesso a reflexões muito interessantes de Pessoa.
"O desenho das crianças é como o das pessoas que não sabem desenhar - ambos dizem, mas não sabem o que dizem. Não sabem desembaraçar as linhas de uma coisa das linhas das outras coisas que vêem ao mesmo tempo dentro da mesma palavra. A prova é que não são capazes de imitar o que da primeira vez lhes escorregou do corpo pela mão para o papel."
Ou ainda ensinamentos sobre os quais não podemos deixar de pensar e, quem sabe, interiorizar de modo a conferir mais um sentido à nossa vida.
"«Não tenhas mêdo de estares a ver a tua cabeça a ir directamente para a loucura, não tenhas mêdo! Deixa-a ir até à loucura! Ajuda-a a ir até à loucura. Vae tu também pessoalmente, co'a tua cabeça até à loucura. Vem ler a loucura escripta na palma da tua mão. Fecha a tua mão, com força. Agarra bem a loucura dentro da tua mão.
«Senão... se tens mêdo da duvida e te pões a fugir d'ella por môr da loucura que já está à vista, se não começas desde já a desbastar a fantasia que cresceu no logar marcado para ti, lá em baixo na terra; se não pretendes transformar essa fantasia em imaginação tranquilla e creadora...
... um dia a loucura virá plo seu próprio pé bater à tua porta, e tu, desprevenido, e tu sem mãos para a esganar, porque a loucura já será maior do que na palma da tua mão, porque a loucura será maior do que as tuas mãos, porque a loucura poderá mais do que tu com as tuas mãos; e ella fará de ti o pior de todos, por não teres sabido servir-te d'ella como tu devias sabe-lo querer!"

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

"O que os homens dizem e o que as mulheres ouvem", de Linda Papadopoulos

Todos somos diferentes, agindo de maneiras diferentes com diferentes intenções. Mas há algo que é comum, a necessita de percebermos os outros e encontrarmos justificação para os seus actos. Ao interpretarmos o outro, cometemos muitos erros que conduzem a desilusões e equívocos desnecessários.

As diferenças entre sexos serão sempre apregoadas, e a realidade é que homens e mulheres agem naturalmente de modos diferentes. Este livro torna-se muito interessante ao mostrar situações que acontecem muitas vezes e que são muito engraçadas, mostrando que talvez o melhor seja viver a situações, e não passar o tempo a tentar interpretá-las.

"Como seres sociais, criamos enormes abismos entre o que dizemos e o que os outros ouvem.Isto é verdade para qualquer conversa, mas é particularmente o caso quando a pessoa com quem conversamos é a que mais amamos, aquela que sentimos que melhor deveria compreender-nos. Mas é precisamente no contexto das relações pessoais que precisamos de fazer todos os esforços para nos compreendermos realmente uns aos outros e para percebermos que a forma como interpretamos o que está a ser dito se baseia, em grande parte, em crenças preexistentes, que mantemos acerca de nós mesmos e do mundo que nos rodeia; nem sempre na intenção do outro.", In O que os homens dizem e o que as mulheres ouvem

"Leite Derramado", de Chico Buarque

Quando se chega a uma idade avançada, a mais provável realidade prende-se com a dependência de profissionais de saúde na satisfação das necessidades mais básicas. O sofrimento, a dor, a nostalgia são uma constante, difícil de compreender pelos mais novos e impossível de aceitar pelos que sofrem.
O passado é a única fonte de felicidade, porque o presente pouco ou nada é em termos de qualidade de vida, e o futuro uma palavra que não existe. A memória começa a falhar, por vezes mais do que seria normal.

"Na velhice a gente dá para repetir casos antigos, porém jamais com a mesma precisão, porque cada lembrança já é uma remendo de lembrança anterior.", In Leite Derramado

Mais do que nunca surge a necessidade de ter alguém que ouça as histórias e experiências que há para contar. Os amores e desamores, os ensinamentos, as peripécias, os erros, as traquinices. Infelizmente, o mais comum é já não haver ninguém para ouvir, ou mesmo que haja, mais tarde ou mais cedo acaba por se fartar de ouvir sempre as mesmas histórias. Os profissionais de saúde, são quase sempre o último recurso, a última esperança para quem não tem ninguém a quem falar. Uma enfermeira que surge e dá atenção ao doente que não tem ninguém, é muitas vezes idealizada por este como o amor que há muito perdeu e permite que o seu sonho continue, a sua utopia de voltar a viver o amor e tudo o que ele implica.

"Com o tempo aprendi que o ciúme é um sentimento para proclamar de peito aberto, no instante mesmo de sua origem. Porque ao nascer, ele é realmente um sentimento cortês, deve ser logo oferecido à mulher como uma rosa. Senão, no instante seguinte ele se fecha em repolho, e dentro dele todo o mal fermenta. O ciúme é então a espécie mais introvertida das invejas, e mordendo-se todo, põe nos outros a culpa da sua feiura.", In Leite Derramado

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

"A Senhora das especiarias", de Divakaruni

Uma história com uma grande componente oriental e um gosto requintado das mais fantásticas especiarias, em que a personagem principal renuncia à beleza e à juventude em prol do seu amor pelas especiarias, vivendo numa sociedade completamente diferente daquela de que é originária.
Passa a vida a tentar resistir ao que lhe é proibido, ao amor, ao desejo, à possibilidade de viver com um homem, a sair à rua, a conhecer a realidade do mundo que a rodeia.

"É sempre assim quando penetramos no mundo proibido a que alguns chamam pecado? Dou o primeiro passo, a custo, sem fôlego. O segundo também faz doer, mas já não tanto. Com o terceiro a dor passa pelo nosso corpo como uma nuvem de chuva. Pouca falta para que nos não dê descanso, ou dor.", In A Senhora das Especiarias

Será possível imaginar a vida sem identidade? Ou melhor, sem um nome fixo, que nos identifique desde sempre e para sempre? Mesmo assim, carregar as exigências, expectativas e regras de um nome que nasceu ele próprio contra as regras. Dar mas não poder receber, não parece justo, nem suportável para sempre.

"Todavia, eu nunca fora abraçada. Nem pelo meu pai nem pela minha mãe. Nem pelas mestras minhas irmãs. Nem sequer pela velha, não desta maneira, com os corações colados um ao outro. Eu, Tilo, a criança que nunca podia chorar, a mulher que nunca haveria de chorar. Sorrio por entre as lágrimas quando o aroma da sua pele me enche e o seu bafo quente pousa nas minhas pálpebras. Os meus ossos derretem-se com este desejo de ser abraçada, eu que nunca julgara desejar a protecção dos braços de um homem.", In A Senhora das Especiarias

Por uma experiência, um sonho, por vezes arrisca-se tudo. E neste caso, quem manda na sorte não é a Mestra, mas sim as Especiarias.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

"Budapeste", de Chico Buarque

Para além de cantor, Chico Buarque revelou-se também um óptimo escritor e brinda-nos com esta história, em que a personagem principal também é escritor, mas que não assina os seus escritos, antes pelo contrário, o seu trabalho é mesmo escrever textos que serão patenteados por outras pessoas.
Uma vida feita de grandes mudanças, mas em que permanece a obsessão pela escrita e pela linguagem, e o amor que o prende a um país que não o seu, não só o de uma mulher, mas também o amor associado a uma língua que pretende dominar na perfeição.
"Para algum imigrante, o sotaque pode ser uma desforra, um modo de maltratar a língua que o constrange. Da língua que não estima, ele mastigará as palavras bastantes ao seu ofício e ao dia-a-dia, sempre as mesmas palavras, nem uma a mais. E mesmo essas, haverá de esquecer no fim da vida, para voltar ao vocabulário da infância. Assim como se esquece o nome de pessoas próximas, quando a memória começa a perder água, como uma piscina se esvazia aos poucos, como se esquece o dia de ontem e se retêm as lembranças mais profundas. Mas para quem adoptou uma nova língua, como a uma mãe que seleccionasse, para quem procurou e amou todas as suas palavras, a persistência de um sotaque era um castigo injusto", In Budapeste
O leitor Português que opte pela versão Português do Brasil, muito provavelmente verificará ao longo do livro que o seu raciocínio começa a ser feito em Brasileiro, porque é inevitável não reparar nas diferenças ao nível da construção frásica e de alguns conceitos.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

"O Processo", de Kafka

Ao ler esta obra é impossível o nosso pensamento não remeter para o estado da justiça em Portugal, sendo que as comparações são inevitáveis, não só por semelhanças, mas também por diferenças.
De qualquer modo, alguns aspectos descritos atribuem um carácter de intemporalidade à obra, e uma metáfora da realidade, por vezes hiperbolizada e outras vezes implícita.
“Neste género de discursos o advogado era inesgotável. Repetiam-se em todas as visitas. Havia sempre progressos, mas nunca a natureza destes progressos podia ser comunicada. Trabalhava-se incessantemente no primeiro requerimento, mas não estava terminado, o que, aquando da visita seguinte, se revelava a maior parte das vezes uma bênção, porque, sem que se pudesse prever, a ocasião teria sido particularmente mal escolhida para apresentar o requerimento. Se K., esgotado com estes discursos, observava por vezes que mesmo levando em conta todas as dificuldades, as coisas avançavam com lentidão, mas que estariam sem dúvida muito mais longe se K. se tivesse dirigido ao advogado na devida altura”, In O Processo
É comum dizer-se que todo indivíduo é inocente até que seja efectivamente provada a sua culpa, o que na prática não acontece, dado que a partir do momento em que há uma suspeita, a maior parte das pessoas que rodeiam o individuo passam a olhá-lo com alguma reticência e quando ele diz: “Estou inocente”, a resposta em surdina é: “Todos dizem o mesmo”.
Inocente ou culpado?

quinta-feira, 2 de julho de 2009

"Desassossego", de Fernando Pessoa

Uma obra de grande qualidade, que nos transporta para uma outra dimensão. Ao lermos na primeira pessoa, é inevitável que incorporemos aquilo que estamos a ler e sintamos mais do que seria esperado, sendo que não vivemos, mas sim imaginamos que vivemos através das palavras de alguém que também imaginou viver o que nos é descrito.
Os pensamentos tornam-se realidade ao tomarem a forma de palavras escritas, e a sua imortalidade uma consequência. E não importa a forma como são escritos, mas sim os sentimentos que despertam.
"A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação. O que sinto, na verdadeira substância com que o sinto, é absolutamente incomunicável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais incomunicável é. Para que eu, pois, possa transmitir a outrem o que sinto, tenho que traduzir os meus sentimentos na linguagem dele, isto é, que dizer tais coisas como sendo as que eu sinto, que ele, lendo-as, sinta exactamente o que eu senti. E como este outrém é, por hipótese de arte, não esta ou aquela pessoa, mas toda a gente, isto é, aquela pessoa que é comum a todas as pessoas, o que, afinal, tenho que fazer é converter os meus sentimentos num sentimento humano típico, ainda que pervertendo a verdadeira natureza daquilo que senti", In O livro do desassossego